24 de fev. de 2011

Transversal 4

     
pv_lopes

    A vida está repleta de transversais. Como as ruas. Como os olhares. Como as pessoas que se cruzam todos os dias no ônibus.
    Os pensamentos são sempre um mistério e tentar descobri-los em alguma alcova cerebral o grande desafio.
    As tentativas são muitas. Acontecem naqueles olhos claros de uma senhora sentada. Pensa em seus netos? Em uma Porto Alegre perdida nas memórias? São decifrados apenas momentos antes de partir para o reencontro com os seus.
    Outros seguem indecifrados. Como aqueles olhos castanhos, parcialmente cobertos por uma franja ruiva. Parecem blindados pela simplicidade sufocante do passeio das ideias entre intervalos no olhar.
    O fascínio está na ausência de respostas. Na possibilidade de criar mais histórias a partir daquele singelo olhar.

19 de fev. de 2011

Remixei a Midiologia

ramiro simch


E tava eu ali, mais uma vez escutando o Acabou Chorare dos Novos Baianos. Genial, sempre. Só que dessa vez, além do som que sai do PC e entra na minha cabeça, meus olhos e mãos apreciam também o encarte original do álbum. (É que meu pai chegou, me viu ali, desencavou o bolachão dele e me lançou.) Muito massa.

Navegando entre as letras, desenhos e fotos (os vinis ganham fácil dos CDs nesse material), leio o texto-teto de apresentação, escrito pelo Luiz “Joãozinho Trepidação” Galvão. Um trechinho em particular me chama a atenção:

“(...) A dúvida tem só a duração de um lance. Ser junto, ser mais de dois (o sonho dourado da família). Encontro constante e continuado com o fiozinho de nada que é você. (...)”

“O Sonho Dourado da Família”. Essas palavras me tiraram da atmosfera “Cantinho do Vovô 70’s” e me jogaram de volta pro hoje, pra São Paulo, pro rap. É que esse é o nome do EP de um dos melhores grupos brasileiros do gênero, o Elo da Corrente. Baita trampo: produção impecável e letras fodas, lirismo bem acima do nível comum dos MCs tupiniquins.

A tal frase é só mais uma entre as outras pra quase todo mundo que lê o texto. Porque quase ninguém conhece Elo, e menos pessoas ainda sabem do EP; até mesmo quem sabe, por mil motivos, pode nem se flagrar dessa ligação.

Mas ao menos eu me interessei. Adoro viajar nesse tipo de coisa: referências, inspirações, histórias, samples. Comecei a pensar. O que será que levou os caras a nomear o EP deles com uma partícula do segundo parágrafo do texto do encarte desse álbum de 1972? Quando será que eles ouviram o disco pela primeira vez? Por que acharam tão marcante essas palavras? Quantas pessoas além de mim já ouviram Novos Baianos E Elo da Corrente? E quantas já se ligaram nesse esquema aí? Não muitas, certamente. Talvez ninguém.

Era só isso. Vou botar o link pra download das duas obras. Baixem as duas, baixem uma das duas, ou nenhuma. Só que a última opção é burrice: Acabou Chorare é o maior disco brasileiro de todos os tempos segundo a Rolling Stone, e O Sonho Dourado da Família é ótimo também.

E passe a prestar atenção nesses pequenos elos dentro da corrente musical, e da literária, da cinematográfica, da cotidiana. Tudo fica mais afudê quando se descobre os duplos sentidos e as segundas intenções.


P.S. As outras frases ditas no início da faixa-título do EP do Elo são do texto do Galvão também.

P.P.S. Não vem dizer que ouviu Acabou Chorare e não gostou. Mentiroso.





16 de fev. de 2011

É papel de mãe escutar

ramiro simch

Mãe, por que eu?
Eu aposto que nem existe Deus porra nenhuma. Por que Deus faria isso comigo? Tomara que nem exista, porque se existe eu odeio Ele.
Eu nunca fiz nada pra ninguém, porra. Tanta gente ruim no mundo... É inacreditável. É i-na-cre-di-tá-vel, parece filme. Não adianta falarem que sabem o quanto é difícil pra mim, óbvio que não sabem. Não to com raiva de vocês, só não sabem mesmo. Não têm como saber, é a real.
Eu fico imaginando direto, tipo eu saindo do mercado e voando até a porta de casa, voando pra aula, essas coisas assim. Coisas normais pra todo mundo. Fico lembrando... Mas quase nem sei mais como é. Se pá cada passo que eu tenho que dar nesse chão podre ajuda a enterrar pra sempre essas memórias.
Eu me sinto excluído. Em cada lugar que eu entro parece que eu to dentro de uma bolha, parece que tá todo mundo me olhando sempre. Tem os cabaços que riem, óbvio, mas isso nem dá nada. Pior são as pessoas legais, que tentam te respeitar, mas dá pra sentir eles tendo pena de ti. Além de que pra chegar em qualquer lugar eu demoro séculos, prefiro nem ir...
Bah, tá foda.
Eu não mereço isso, eu sei que eu não mereço. Merda. Merda!

“ADOLESCENTE PERDE AS DUAS ASAS EM ACIDENTE COM HELICÓPTERO”

34

Há anos tentava criar a mulher perfeita. Olhos, cabelos, sorriso. Punk ou fashion? Inteligente ou tola? Muitas dúvidas, apenas uma certeza, deveria ouvir Procol Harum. Nada de Ivete Sangalo ou sertanejo universitário, apenas Procol Harum.
Muitas vezes vi os traços dela, com uma sombra, dançando ao som desta banda.
Incrivelmente alguns sonhos se realizam. O meu estava ali, à beira do balcão, bebendo uma taça de vinho tinto.
Sentei-me ao seu lado, pedi um jenever. A cada gole um golpe violento, o desejo de tornar aquele fascínio um ato recíproco.
Entre um pensamento e outro uma olhada no noticiário da tv. Uma entrevista e o gancho para puxar conversa.
Depois de um tempo eu já sabia que seu nome era Lívia, que fazia artes visuais e gostava de poesia concreta.
Eu já estava mais calmo, até que, em um lance de maestria, ela disse que calçava 34. Nada mais precisou ser dito, o meu desconcerto confirmava que a doce realidade.